Rezando os salmos
Este artigo foi escrito na REVISTA DE LITURGIA 163
É muito comum encontrarmos no meio do povo pessoas que gostam de rezar salmos. Salmos como o 23(22), o 91(90), o 51(50), o 62(61) acompanham momentos decisivos na vida de muita gente, que se identifica com a experiência do salmista e e toma como referência para a sua oração.
Quando vamos a uma celebração, sempre encontramos salmos. Eles aparecem na liturgia da palavra como resposta a uma leitura bíblica, e em outros momentos das celebrações tanto da eucaristia como dos sacramentos. Enriquecendo o repertório de músicas para todo o ano litúrgico, o Hinário Litúrgico da CNBB valorizou os cânticos bíblicos, sobretudo os salmos. O Ofício Divino das Comunidades trouxe de volta o antigo costume de rezar salmos na oração da manhã e da tarde.
A base da oração do salmo é a nossa própria vida e a busca de Deus. Como eles nasceram de dentro da vida e do desejo de ser fiel à aliança de Deus, quanto mais procuramos aprofundar o nosso caminho, evitando todo tipo de superficialidade, tanto mais nos aproximamos dos salmos e encontramos neles uma fonte de água para a nossa sede. O salmo “toca tanto as profundezas como os cumes de cada um de nós. Nele encontro-me no que tenho de melhor e de pior. Posso aclamar a Deus com ardor, confiança e esperança, mas posso também dar livre curso aos sentimentos obscuros que poderiam estar escondidos nos recantos sombrios e dolorosos do meu coração. Acima de tudo, os salmos expressam a realidade do meu desejo de Deus e da minha alegria, dos meus sofrimentos nas vicissitudes da minha procura dele”. [1]
É esta base humana que faz com que tanta gente, mesmo sem qualquer conhecimento bíblico, leia o salmo 23 e imediatamente se identifique com ele. Esta base é essencial para descobrir outros salmos menos acessíveis e superar as dificuldades de linguagem, de tradução, de sentido que eles apresentam.
Para ajudar a superar estas dificuldades, há um trabalho de aproximação a ser feito, um trabalho para descobrir a chave de entrada que dá acesso a todos os recantos do salmo. Esta coluna vai ajudar a fazer este trabalho, a conquistar uma maior intimidade com os salmos. Se eles nasceram para saciar a sede de Deus e se puderam ser uma escola de oração para os pais e mães da nossa fé, poderão ser, ainda hoje, referência em nosso caminho de fé. Partindo cada vez de um salmo, vamos oferecer alguns elementos para quem deseja aprofundar os salmos usando o método da leitura orante. Se puder ser um estudo em grupo, ajudará muito, pois a bíblia é melhor compreendida em comunidade; isto, porém, mas isto não substitui a leitura e meditação pessoal.Vamos começar com o Salmo 72(71).
Salmo 72(71)
1Concede, ó Deus, ao teu rei a tua sabedoria!
Tua integridade esteja com ele,
2 e governará teu povo com justiça,
será um juiz justo para os teus pobres.
3 Então haverá paz, estável como as montanhas,
viveremos na justiça sobre as colinas da nossa terra.
4 Restituirá aos pobres os seus direitos,
promoverá os miseráveis,
e seus opressores injustos,
ele os esmagará.
5 Viverá para sempre, como o sol,
de geração em geração.
6 Como a chuva sobre a relva,
como o orvalho que molha a terra,
assim ele virá.
7 Naqueles dias, brotará a justiça,
haverá paz em abundância.
Até o fim dos tempos!
8 Dominará a terra toda,
do oriente ao poente.
9 Seus adversários se curvarão diante dele,
seus inimigos serão rebaixados até o chão.
10 Das regiões mais distantes,
virão os homens trazer-lhe seus presentes.
11 Os governantes dos povos, os ricos do mundo,
virão oferecer-lhe os seus tributos.
12 Ouvirá os clamores dos pobres,
virá o abandono dos miseráveis,
a todos libertará!
13 Ficará comovido diante dos fracos e indigentes;
Ele os salvará,
14 libertando-os da violência e da opressão.
A vida do pobre é preciosa aos seus olhos.
15 Viva o rei para sempre,
no meio da abundância e da riqueza!
Rezemos por ele, sem cessar.
Anunciaremos eternamente que dele vem a salvação.
16 Haverá fartura de trigo na terra,
suas espigas ondularão ao vento no alto dos montes.
As árvores se encherão de frutos,
e as cidades florescerão como as plantas do campo.
17 Seu nome existirá para sempre,
brilhante como o sol no céu!
Uma fonte eterna de paz e felicidade,
para todos os humanos da terra.
18 Bendito o Senhor, Deus de Israel:
só ele faz maravilhas.
19 Bendito seja sempre o seu nome.
Toda a terra se encha da sua glória. Amém. Amém.
SALMO 72(71) [2]
1. Senhor, concede ao rei tua justiça
e ao filho dele dá sabedoria.
A fim de que governe retamente
os pobres, pra viverem na alegria.
Dos montes venha a paz para este povo
e das colinas desça a salvação.
Ele há de proteger os pequeninos,
vencendo quem lhes faz oposição.
- Ele há de viver tanto quanto o sol
e como a lua: séculos sem fim.
Chegando qual chuvisco nas campinas,
caindo como a chuva no capim.
Justiça se verá no seu reinado
e nele sempre a paz florescerá.
Dominará de um mar a outro mar,
do rio ao fim da terra reinará.
- Diante dele caem os inimigos
e, derrotados, vão lamber o chão.
Os reis de Társis, príncipes das ilhas,
tributos para ele pagarão.
Os reis de lá da Arábia e de Sabá
virão oferecer os seus presentes.
Diante dele os reis vão se curvar
e a ele servirão todas as gentes.
- Ao pobre que o invoca ele liberta
e aquele que ninguém quer ajudar.
Do fraco e do pequeno ele tem pena
e a vida da pobreza há de salvar.
Liberta-os da injustiça e da opressão.
Dará muito valor ao sangue deles.
Que viva e ganhe o ouro da Arábia.
Por isso, vão louvá-lo e agradecer-lhe.
- Na terra haverá trigo com fartura,
subindo a plantação pelos outeiros,
lembrando a terra boa lá do Líbano.
E cresce o povo: planta de canteiro.
Seu nome vai ser sempre bem lembrado,
sua fama, como o sol, vai se elevando.
Será bendito por todos os povos
e as gentes o seu nome irão louvando.
- Bendito sejas tu, Deus de Israel,
porque só tu nos podes dar vitória.
Tua fama será sempre conhecida
e a terra se encherá de sua glória.
Ao Pai louvor e glória demos todos
e glória ao Filho, que é libertador.
Também louvor e glória ao Santo Espírito,
a Deus sempre se dê glória e louvor.
1. Leitura do texto em si
O primeiro passo é o contato pessoal e direto com o texto. Leia o salmo inteiro. Releia-o, deixando-se tomar pela força das imagens, da poesia, de cada palavra… Releia agora, verso por verso, como quem faz uma escavação, procurando perceber :
a) Como o salmo está estruturado?
O salmo 72, embora não esteja claro, parece começar com um pedido (v. 1b), seguido de uma série de motivos (2-17), terminando com um breve hino de louvor (18-19), que encerra o segundo livro dos salmos.[3]
b) Qual terá sido o motivo que levou à composição deste salmo?
O trabalho é procurar destacar no salmo toda e qualquer informação sobre a situação que o gerou. Há alusões a lugares, à situação do povo, a algum acontecimento?
O salmo 72 parece estar ligado à festa de posse de um rei, autoridade política do povo hebreu desde que acabou o sistema das tribos (1040) até o exílio da Babilônia (586 a.C.). A função do rei era, basicamente, fazer justiça, defendendo o povo das agressões internacionais e das injustiças internas. O salmo é o reflexo da esperança que o povo deposita no novo governador eleito, do desejo incontido de um tempo de paz e prosperidade para o povo. O salmo desfila uma ladainha de venturas que o povo acredita poder ter com o novo governo. A própria natureza benfazeja (v. 6-7a) é imagem da salvação que este novo reinado representa para o povo. Pelo jeito há pobres, indigentes e fracos no meio do povo. O novo rei será justo, protegerá o desvalido…
É possível que o desejo vá mais longe que a realidade, como acontece, muitas vezes, quando o povo deposita toda confiança em alguém e, de repente, vê que o que ele pode fazer é menos do que a necessidade exige. Mas o importante é não perder a esperança, que pode renascer até da decepção, e manter a utopia para abrir novos caminhos.
c) Qual o rosto de Deus que o salmo revela?
O salmo faz referência à situação internacional, aos inimigos do rei e do povo. Desta forma, deixa escapar uma visão imperialista, desejando que o novo rei domine os reis do mundo inteiro (v. 8-11). É natural que, tendo nascido em tempo de monarquia, este salmo esteja tão carregado das suas ideologias. Apesar disso, é o rosto do Deus da aliança, que volta seu olhar para o pobre, valendo-se da mediação humana. Como no tempo do Egito, Deus quer para o povo um novo êxodo, e deseja que o rei seja um novo Moisés. E se o salmo pede a paz de forma ou com visão etnocêntrica, temos que fazer o que ele ensina superando o método que ele propõe. Isto corresponde, hoje, a buscar uma cultura de paz, optando pela mística da não-violência.
Aos poucos o povo descobre a fraqueza da monarquia e tem que admitir que nenhum rei foi capaz de viabilizar o projeto descrito no salmo. Quando Israel não tinha mais rei, o povo pobre orou este salmo esperando o rei messias. O povo passa a ver neste salmo um rei ideal, o messias justo e bondoso que deve inaugurar um tempo totalmente novo de prosperidade e paz.
- Atualizando o texto
Agora, sem esquecer o sentido que o salmo tem no seu contexto histórico, nós o relemos como os primeiros cristãos fizeram, a partir da vitória pascal de Jesus. Isto nos leva a perguntar:
a) Qual o sentido novo que o salmo adquire lido a partir de Jesus?
A tradição cristã reconheceu na vinda história de Jesus o cumprimento da promessa contida no salmo 72. É Jesus o messias que veio para, finalmente, realizar este tempo novo de paz e direito para os pequenos do povo. É bom procurar as ressonâncias deste salmo no Novo Testamento. O texto que logo salta em nossa lembrança é o relato de Mateus (2,1-12), mas podemos lembrar outros textos que tenham a ver com o salmo.
b) Quando e com que sentido este salmo aparece na liturgia?
Colocando este salmo na oração da tarde, a Igreja entende que o Cristo está no centro da oração como luz das nações, salvação do povo, juiz dos vivos e dos mortos. Colocando no advento, agradece a Deus porque a paz que vem dos montes é o Cristo (v. 3); ele descerá como a chuva sobre a relva e como a água que fecunda a terra (v. 6) e, com a sua vinda, a justiça vai florescer e será garantida até o fim dos tempos (v. 7). No natal, proclamamos que o seu nome será bendito e durará tanto como o sol e que nele serão abençoadas todas as nações (v. 17). Na epifania, ao ler que os reis vêm de longe trazendo presentes e prostrando-se diante do rei, pensamos nos magos do oriente que, segundo o relato de Mateus, vieram oferecer seus presentes a Jesus, adorando e reconhecendo nele o rei da paz (v.10 e 11).
c) Em que outro momento podemos orar o salmo 72?
Em qualquer tempo ele pode ser expressão de nossa ânsia de salvação e de paz. Embora carregue dentro de si a ideologia triunfalista da monarquia, o salmo 72 pede justiça, e não vingança, e nos convida a romper a corrente do ódio optando por uma cultura de paz. Talvez tenhamos que começar por nós mesmos, por uma busca de unificação interior e pelas relações do nosso cotidiano, tantas vezes desgastadas por conflitos… até chegar a uma consciência de que somos cidadãos comprometidos com a justiça do reino.
Em um tempo em que sentimos forte a necessidade de preservar a natureza, o salmo nos ajuda a rezar sentindo a energia fecunda da terra como sacramento da amorosa manifestação de Deus, e a nos engajar na luta para defender a terra e os seres.
- Oração
À medida que vamos percorrendo os versos do salmo, vamos sentindo tem a ver com a nossa experiência de fé e de luta, com o nosso desejo de paz e de justiça. Às vezes uma palavra nos toca mais profundamente é bom se deter, colocar-se diante de Deus e, simplesmente, orar, deixando que o Espírito de Deus confirme em nós e através de nós esta palavra.
O salmo pode sugerir uma oração espontânea, ou a repetição de uma frase que calou mais fundo, ou simplesmente o silêncio. O importante é que ele nos leve a viver um encontro bem pessoal com o Cristo que entra em nossa humanidade para recriá-la, como a chuva que molha a relva. Perceber que esta força salvadora me atinge pessoalmente, e se alarga para outros espaços.
Se parte do trabalho foi feito em grupo, seria interessante que se concluísse retomando a oração do salmo, cantando de preferência,[4] e, no final um tempo para cada pessoa partilhar o que viveu, ou simplesmente repetir uma palavra ou frase que lhe tocou mais… Por fim, quem estiver coordenando conclui com uma oração sálmica:[5]
Deus de justiça e santidade, tua misericórdia agraciou nossos montes e nossos vales com uma chuva de paz, anunciada pelos anjos e acolhida pelos pobres. Livra-nos da tentação de combater a violência com a violência e ajuda-nos a acolher a força da paz que vem de ti. Dá aos pobres e desamparados a consolação da tua bênção, e a nós que estamos aqui o desejo de seguir Jesus e a certeza da páscoa que nos faz nascer de novo. Por Cristo, nosso Senhor. Amém.
[1] DE WAAL, Esther. A procura de Deus, segunda a regra de S. Bento, Juiz de Fora 1994, p. 145
[2] Esta versão rimada está no Ofício Divino das Comuidades, p. 89. Tem a vantagem de ser rimada, mantendo toda fidelidade ao texto bíblico, e de ter uma melodia própria.
[3] Para se parecer com a Torá ou Pentateuco, o livro dos salmos foi organizado em cinco pequenos livros. O primeiro vai até o salmo 41, o segundo do 42 ao 72, o terceiro do 73 ao 89, o quarto do 90 ao 106 e o quinto do 107 ao 150. Ao último salmo de cada livrinho (41, 72, 89, 106) foi acrescentado um pequeno hino de conclusão ao livro. O salmo 150 é todo ele um hino que encerra o saltério inteiro.
[4] A versão do Ofício das Comunidades possui uma boa melodia e pode ser encontrada na fita cassete “Ofício Divino das Comunidades”, n. 4, lado B. Outra alternativa é salmodiar. Neste caso, é sempre bom acrescentar um refrão que ligue o salmo com o tempo ou a festa… Para epifania, vejam o Hinário 1 da CNBB, p. 6 (Vimos a sua estreja no oriente…); para o natal, a p. 26 (Já nasceu o Filho do Deus eterno, príncipe da paz), etc.
[5] A Igreja antiga tinha o costume de concluir a oração de um salmo com uma oração tipo coleta, chamada oração sálmica. Retomando o salmo, esta oração tem a função de atualizá-lo a partir de Jesus.