“Correr ao encontro das festas que se aproximam!”

Dom Edmar Peron

 

Um dos gestos tradicionais com o qual a Igreja inicia o tempo sagrado da Quaresma é a benção e a imposição das cinzas. As duas orações do missal romano, à escolha, fazem referência explícita ao Mistério Pascal, do qual a Igreja se aproxima pelo caminho da conversão e da penitência. A primeira oração pede a Deus que os fiéis, recebendo as cinzas, possam progredir na observância da Quaresma e, desse modo, “celebrar de coração purificado o mistério pascal” de Jesus Cristo. A segunda, suplica a graça de que os fiéis consigam, “pela observância da Quaresma, obter o perdão dos pecados e viver uma vida nova, à semelhança do Cristo ressuscitado”.

Procuraremos, pela meditação das Orações do Dia ou Coleta de cada Domingo deste tempo litúrgico, beber da fonte de espiritualidade, a Liturgia, acolher o itinerário quaresmal e caminhar firme e alegremente em direção à Páscoa. À meditação dessas orações, cada pessoa ou comunidade precisará unir a leitura orante dos textos bíblicos propostos para cada dia.

Primeiro Domingo: “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”

Pela iniciação cristã fomos configurados sacramentalmente a Jesus Cristo: nos tornamos filhos e filhas n’Ele e participantes de sua Unção espiritual. Como ensina o apóstolo Paulo: com Cristo fomos sepultados para que, assim como ele ressuscitou dos mortos, “possamos caminhar numa vida nova” e, permanecendo unidos a ele, participaremos de sua glorificação, “com ressurreição semelhante à dele” (Rm 6,4-6).

A Igreja, no início da Quaresma, querendo preparar aqueles que foram iniciados pelos sacramentos do Batismo, da Confirmação e da Eucaristia, os fiéis, para a celebração do mistério pascal, pede a Deus que possam dar novos passos, ou seja, “progredir no conhecimento de Jesus Cristo”. Assim, a vida nova que lhes fora dada pelos sacramentos da Iniciação poderá manifestar-se ainda melhor em seu viver. É a liturgia fazendo jorrar, como de uma fonte, a vida espiritual; bebendo desta fonte e, saciados para aquele momento, os fiéis tornarão a ter sede e a buscarão sempre mais.

Expressão deste progresso espiritual, fruto do sacramento da Quaresma e do empenho pessoal dos fiéis, será levar uma “vida santa”, o modo concreto para corresponder ao amor de Jesus Cristo. No horizonte da caminhada quaresmal se vislumbra, pois, a possibilidade de um renovado encontro dos fiéis com Jesus Cristo: progredir no conhecimento dele e corresponder ao amor dele por nós, caminhando “numa vida nova”. É sempre bom lembrar: conhecimento, no sentido bíblico, é algo existencial, uma experiência, e não uma simples ideia, apreendida pela razão.

Eis os primeiros passos que a Igreja, ao iniciar cada ano a Quaresma, é chamada a dar. E ela sabe que seu caminhar poderá ser feito somente na confiança em Deus, aquela mesma testemunhada pelo Salmo 91[90], proposto para ser canto de comunhão: “Ele te cobrirá com sua sombra, encontrarás abrigo em suas asas”.

Segundo Domingo: “purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão de vossa glória”

O Evangelho deste Domingo, todos os anos, oferece à nossa contemplação o mistério da Transfiguração do Senhor: “Perante testemunhas escolhidas, Jesus manifestou sua glória e fez resplandecer seu corpo, igual ao nosso, para que os discípulos não se escandalizassem da cruz” (Prefácio, Transfiguração do Senhor). Ele próprio “ensina que, pela Paixão e Cruz, chegará à glória da Ressurreição” (Prefácio, 2º Domingo da Quaresma). É, portanto, um anúncio pascal: da Cruz à Ressurreição, do escândalo da Cruz à alegria da Ressurreição, mas ao inverso: primeiro a visão do corpo glorioso, depois aquela do corpo chagado, crucificado e morto do “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos” (Is 53,3 – Primeira Leitura, Celebração da Paixão).

Esse mistério da Transfiguração também convida à conversão: é preciso purificar o olhar da fé, para não se escandalizar da humanidade do Filho de Deus, coberta de sofrimentos, em sua Paixão. Tal purificação passa necessariamente pela obediência ao Pai, que manda a Igreja ouvir o Filho amado: “Então da nuvem luminosa dizia uma voz: Esse é meu Filho amado, escutem sempre o que ele diz” (Canto de Comunhão). Tal escuta atenta da Palavra alimenta os fiéis e os catecúmenos em sua caminhada quaresmal. Caminhada exigente, mas não triste, pois a escuta da Palavra gera a fé (Rm 10,14-17), purifica o olhar da fé e faz caminhar corajosa e alegremente porque tem por meta a Páscoa de Jesus e a páscoa de seus discípulos e discípulas, até a alegria perfeita na visão da glória de Deus.

Terceiro Domingo: “humilhados pela consciência de nossas faltas, sejamos confortados pela vossa misericórdia”

Esse Terceiro Domingo acrescenta outro elemento ao itinerário quaresmal: tomar consciência de nossas faltas e caminhar rumo à Páscoa, amparados pela misericórdia divina e curados pelo jejum, a oração e a esmola.

As tradicionais práticas desse tempo – jejum, esmola e oração – aparecem como “remédio” que nos curam do fechamento em nossos próprios interesses e dores, convidando-nos a um sair de nós mesmos, a nos abrir a Deus e ao próximo e a viver um estilo sóbrio e despojado, imitando Cristo, que “esvaziou-se a si mesmo” (Fl 2,8). Mas, parece que, para muitas pessoas, esse remédio está com validade vencida ou já foi descartado como ineficaz.

Acima de tudo, porém, resplandece a misericórdia de Deus que nos conforta, quando tomamos consciência de nossas faltas: “é grande o nosso pecado, porém é maior o teu coração” (Quaresma, Canto de Abertura). Deus é apresentado à Igreja, nesse Domingo, como a própria “fonte de toda misericórdia e de toda bondade”; ele conforta quem está caminhando.

O Papa Francisco tem repetido: “Deus nunca se cansa de nos perdoar, nunca!”. Aliás, insiste: “o rosto de Deus é o de um pai misericordioso, que sempre tem paciência. […] Sempre tem paciência, tanta paciência conosco: compreende-nos, está à nossa espera; não se cansa de nos perdoar, se soubermos voltar para Ele com o coração contrito. ‘Grande é a misericórdia do Senhor’, diz o Salmo” (Angelus, 17/03/2013).

Quarto Domingo: “correr ao encontro das festas que se aproximam, cheio de fervor e exultando de fé”

“O Povo de Deus ao longe avistou a terra querida que o Amor preparou”. Quantas vezes cantamos esse hino! Pois bem, o Quarto Domingo da Quaresma nos manda olhar para a Páscoa, a maior de todas as festas cristãs. Ela, nesse ponto do itinerário quaresmal, está mais próxima; é preciso acelerar o passo, mais do que isso, é preciso correr, sustentados pelo fervor e a fé, os quais foram crescendo e lançando raízes ainda mais profundas ao longo das três semanas precedentes. É o Domingo da Alegria: “Alegra-te, Jerusalém! Vocês que estão tristes, exultem de alegria!” (Antífona de Entrada – cf. Is 66,10-11).

A Comunidade cristã não se contém e exulta de alegria, pois, também nos dias atuais Deus continua a realizar “de modo admirável a reconciliação do gênero humano”. Pelo mistério de sua páscoa, o Filho é: a luz que dissipa as nossas trevas (Ano A); a salvação do mundo (Ano B); o rosto misericordioso do Pai (Ano C).

Quando se lê o Evangelho do Filho pródigo – Lc 15,11-32 –, o refrão proposto para a comunhão é todo banhado pela luz pascal: “É necessário, filho, que te alegres: teu irmão estava morto e reviveu; perdido, e foi achado”. À luz da páscoa do Filho se revela, assim, a páscoa da Igreja, páscoa dos filhos e filhas renascidos nas águas do Batismo.

Quinto Domingo: “caminhar com alegria na mesma caridade” de Jesus Cristo.

A proximidade da Páscoa repropõe aos que caminham, sustentados pelo sacramento da Quaresma, a caridade de Cristo, que o levou “a entregar-se à morte em seu amor pelo mundo”. Aqui, mais do que imitar a caridade de Cristo é preciso viver daquele mesmo amor que moveu o Filho, viver e agir naquela mesma caridade. Essa união com Cristo é como aquela existente entre o tronco e os ramos: “O ramo, disse Jesus, que não fica unido à videira não pode dar fruto. Vocês também não podem dar fruto se não ficarem unidos a mim. Eu sou a videira, e vocês são os ramos. Quem fica unido a mim, e eu a ele, dará muito fruto” (Jo 15,4-5).

Esse ideal está presente na Prece Eucarística III: “alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”.

E a oração sublinha: a graça pedida é somente a de caminhar, mas sim de “caminhar com alegria”, seguindo os passos de Cristo que, passando pela Paixão alcançou a Ressurreição. Essa alegria é fruto da comunhão com Cristo, manifestada na obediência aos seus mandamentos: “Se vocês obedecem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como eu obedeci aos mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Eu disse isso a vocês para que a minha alegria esteja em vocês, e a alegria de vocês seja completa” (Jo 15,10-11).

Domingo de Ramos da Paixão do Senhor, o Sexto Domingo: “aprender o ensinamento de sua paixão e ressuscitar com ele em sua glória”

As palavras de abertura da celebração deste Domingo – com o qual entramos nos últimos dias da Quaresma e iniciamos “com toda a Igreja a celebração da Páscoa de nosso Senhor” – ajudam-nos a compreender mais um momento do nosso itinerário espiritual: pela celebração litúrgica deste dia, seguimos “os passos de nosso Salvador para que, associados pela graça à sua cruz, participemos também de sua ressurreição e de sua vida”.

Aprender o ensinamento de sua paixão: rebaixar-se, lavar os pés uns dos outros (Jo 13,12-16), assumir a condição de servo e ser obediente até o final (Fl 2,5-11).

Ressuscitar com ele: morrer para ressuscitar. Viver na história, procurando cada dia, “as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus”; pensar “nas coisas do alto e não nas coisas da terra”, pois nós estamos mortos e a nossa vida está escondida com Cristo, em Deus (Cl 3,1-3).

+ Dom Edmar Peron é Bispo de Paranaguá – PR e escritor da Revista de Liturgia

 

Fonte: Revista de Liturgia 266, março/abril de 2018, p. 26-28

Revista de Liturgia Edição 266 – Laicato e Liturgia

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