Nestes tempos de pandemia, estamos reaprendendo coisas fundamentais que havíamos esquecido: o cuidar-se e o cuidar, o respeito ao ritmo cósmico, a consciência de que somos seres interligados com muitos outros, o senso da justiça e da solidariedade, a capacidade de viver com nossa própria solidão…
A história da humanidade, em suas inúmeras etapas e contextos, nos ensina que as verdadeiras transformações emergem das cinzas. O povo de Israel nasceu de um grito de dentro da escravidão e reencontrou sua identidade na paradoxal experiência do exílio. Jesus de Nazaré, o Verbo encarnado, o crucificado-sepultado, é o ícone mais eloquente do aniquilamento e da morte
transformados em ressurreição.
De fato, não conseguimos alterar a realidade, ela está aí, nua e crua, mas podemos fazer dela uma oportunidade de escuta profunda para interpretar o significado do que nos acontece, desvelar o que parecia oculto e relançar o projeto de uma outra humanidade possível, de um outro jeito de viver neste planeta.
O padre Gegê nos adverte que, dependendo da resposta que dermos ao sofrimento neste momento, nascerá, ou uma nova civilização, mais fraterna e solidária, ou uma sociedade mais acentuadamente “vil, espetaculosa e mesquinha”. Assim, para ele, “a humanidade nunca mais será a mesma; para melhor ou para pior”.
Tudo isso vale também para a Igreja e para a sua liturgia. De um lado, a proposta predominante de celebrar a missa via internet, com padre, mas sem povo, desvela uma mentalidade ainda não superada, apesar de quase 60 anos de Concílio Vaticano II. Pior ainda, sobrevive também a visão mágica de quem sobrevoa as cidades, exigindo que Deus ponha fim à epidemia.
De outro lado, estamos diante de uma oportunidade de reinventar a liturgia a partir da casa, neste momento o lugar mais seguro de reunião, fazendo valer o sacerdócio batismal do povo de Deus. Dessa forma, talvez seja hora de percebermos que faz mais sentido, em vez de assistir, reunir a família, escutar a Palavra, fazer uma prece, invocar uma bênção. São pequenos ritos que revelam uma liturgia simples, essencial, mas que traz em si a garantia da presença de Jesus, conforme ele mesmo prometeu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei no meio deles”. São liturgias que expressam a confiança de que Deus não nos abandona, mesmo quando a morte nos ameaça.
No dia 27 de março de 2020, o Papa Francisco fez um gesto que comoveu o mundo. Apareceu na praça vazia, da basílica de são Pedro, em Roma, desprovido de qualquer ostentação, sem nenhuma promessa de milagre, ainda que alguns houvessem anunciado isso. Um homem vestido de branco, carregando em seu corpo as marcas da paixão de Roma e do mundo, sofrendo
e chorando “a dor dos que partiram sem se despedir”. Não fez uma liturgia para ser vista, mas convidou os povos a rezar juntos, uma oração universal, fraterna, solidária, que fez ouvir o grito de Deus a favor da terra e de toda a sua criação. O pão consagrado foi aí exposto, como sinal de que nele está incluída a humanidade inteira neste momento de gigantesco sacrifício na
luta pela vida. O papa carregava em seu rosto as lágrimas de uma multidão.
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