Nas comunidades cristãs originárias, a Liturgia era a norma da fé e a fonte da espiritualidade. A partir do século VIII, no entanto, fixada em latim e sob o domínio do clero, ela separou-se da Palavra que, agora em língua desconhecida, já não era mais compreendida pelos fieis. Com isso, manteve-se o povo como “mudo espectador” (cf. SC 48) e a celebração do Ofício Divino, que tendia a alimentar a vida do cristão comum e que fazia parte estruturante da liturgia, tornou-se, também, complexa e inacessível. Assim, o que era celebração comunitária, como expressão de fé simples e profundamente bíblica, passou à recitação individual do clero, que já não reunia o povo para celebrar o Ofício. Dessa forma, os momentos comunitários de celebração foram, aos poucos, se limitando ao ambiente monástico, que, apesar de manter seu caráter ligado às horas, conservou as orações em latim e agregou acréscimos requeridos pela condição da vida nos mosteiros, o que contribuiu para levar ao encolhimento daquela prática de oração comunitária no cenário da Igreja.
Segundo Pietro Sorci, professor e liturgista italiano, a causa principal do desaparecimento da oração horária se deve à eucaristização, ou seja, à rigidez do preceito dominical, que não admitia outra forma de santificação do Dia do Senhor senão a celebração eucarística e a prática frequente de missas cotidianas. Além disso, desenvolveu-se também uma piedade de cunho devocional ao Santíssimo, desvinculada do memorial da páscoa do Senhor e de sua celebração.
Enquanto isso, o povo, muitas vezes entregue à própria sorte, sem qualquer oportunidade de uma experiência mais profunda de evangelização e de celebração da fé, buscou criativamente, nas devoções a Maria e aos santos, o alimento da vida cristã. Assim, por exemplo, nas horas do ofício, reza o Angelus e, para substituir os 150 salmos, adota o rosário com 150 Ave-Marias. Do ofício mesmo, o único fragmento que chegou às mãos do povo foi o Ofício da Imaculada Conceição: os hinos das diversas horas, do [oficial] ofício da mãe de Deus, mas, ainda assim, sem os demais elementos (salmos, leituras bíblicas, preces).
A reforma do Concílio Vaticano II devolveu à Liturgia das Horas a sua condição de “oração pública e comum do povo de Deus” (IGLH, n. 1), reafirmando sua natureza de ação litúrgica. Também a qualificou como fonte de piedade para os fiéis (SC 90), oração do Verbo de Deus que toda a Igreja é chamada a fazer como sua (cf. SC 83). O Ofício das Comunidades, apoiando-se na reforma do Concílio, resgata o jeito simples de celebrar o ofício pelas comunidades dos primeiros séculos, além de dialogar com a piedade popular e com a experiência eclesial do nosso continente.
Aos poucos as comunidades vão descobrindo o ofício como possibilidade de uma verdadeira experiência litúrgica, expressão eclesial da fé e parte estruturante da liturgia da Igreja. Nesse sentido, vai-se superando uma prática segundo a qual “liturgia é só missa”, ou afirmações de que “reza do povo é só terço ou adoração ao Santíssimo”. De fato, o Ofício é outra maneira de celebrar a fé da Igreja, além da missa e dos sacramentos, e isso vai se tornando comum, apesar da avalanche de propostas de cunho devocional e conservador que se impõem de forma ostensiva.
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