Os santos e santas são celebrados na liturgia como memórias, festas e solenidades, de acordo com sua relevância de cada um. Cada uma, na vida e missão de Cristo e da Igreja, e conforme a ressignificação atribuída pelas comunidades locais. Na memória obrigatória ou facultativa, além da oração própria, todos os demais elementos podem ser da liturgia do dia, justamente “para não alterar com frequência a sequência da salmodia e da leitura” (IGLH, 218), deixando que prevaleça o mistério pascal do Senhor no qual a memória das santas testemunhas está inserida. Nas festas e solenidades, há elementos próprios – hinos, antífonas, leituras e orações – que explicitam o vínculo da testemunha com Jesus e com a Igreja.
Por desejo do papa Francisco, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos publicou um novo decreto publicado no dia 3 de junho de 2016, solenidade do Sagrado Coração de Jesus.estabelecendo que “a partir de agora [2016], a celebração de Santa Maria Madalena no dia 22 de julho, seja inscrita no Calendário Romano Geral, com o grau de festa em vez de memória”.
Esta mudança, aparentemente despretensiosa, reveste-se de muito significado. Agindo desta forma o papa obedece à grande tradição da Igreja que reconhece o lugar de Madalena, como Discípula amada do Senhor, apóstola igual aos apóstolos. Se ao longo da história a Igreja se faz surda à sua própria tradição, foi por causa do patriarcalismo, que, sem poder negar Madalena com figura central na vida de Jesus e nas comunidades das origens, ocultou a sua verdadeira identidade [transformando-a em pecadora], mantendo o seu nome no calendário como simples memória.
Felizmente, com o papa Francisco, tornando mais acessível ao povo os relatos bíblicos e o conjunto de hinos, antífonas e orações do seu impecável formulário, temos a possibilidade de modificar gradativamente o nosso olhar sobre esta testemunha da nossa fé. É a liturgia [lex orandi] cumprindo o seu papel de escola da fé [lex credendi]. Esta disposição ganha força no atual contexto eclesial, com o avanço da exegese que projeta luz sobre as mulheres discípulas de Jesus, especialmente Maria de Magdala, como paradigmas da missão das mulheres na Igreja e como protótipos de toda comunidade de fé.

Neste dia, recordamos a discípula-apóstola, Maria Madalena, originária da cidade de Magdala, na Galileia. Curada por Jesus de espíritos maus (cf. Mc 16,2 e Luca 8,2), é sempre a primeira citada nas listas das mulheres discípulas. Isso mostra o grau de importância desta Mulher, ao lado de outras discípulas que seguiram e serviram a Jesus desde o início do ministério público na Galileia (cf. Lc 8,1-3).
Ela testemunhou a morte e compareceu ao sepultamento do corpo do seu meste. É lembrada como mirófora, porque depois do sábado, foi com as outras mulheres para o túmulo levando perfumes para completar os ritos funerais feito às pressas e foi testemunha do túmulo vazio. A ela o Senhor apareceu chamando-a pelo nome enquanto chorava no jardim. Foi a primeira a dar a notícia da ressurreição aos discípulos, “apóstola dos apóstolos”, como a tradição a chama. Entre as mulheres do Evangelho, depois da
mãe do Senhor, Maria Madalena é a maior, símbolo da comunidade crente chamada a ser testemunha e missionária da ressurreição. Em sua memória, peçamos ao Senhor, a quem Maria amava e procurava de todo o coração, a graça de uma igreja mais pascal.

Festa de Maria Madalena, igual aos apóstolos
João 20,11-18

Irmã Regina Cesarato, pddm, Roma, 2018

Nos relatos dos quatro Evangelhos, Maria Madalena aparece como testemunha do túmulo vazio, com outras mulheres. É sempre citada por primeiro, durante o ministério publico de Jesus até à ressurreição. Só na cruz a mãe de Jesus vem por primeiro. Isso significa que Madalena tinha uma função importante dentro da comunidade, especialmente no grupo das mulheres que seguiam Jesus, das quais fala Lucas no capítulo 8,1. Elas viviam o discipulado em pé de igualdade com os Doze.
Maria Madalena foi curada de sete demônios. Sabemos que sete é número de totalidade, quer dizer que era uma situação de extrema gravidade, não se sabe se uma doença física ou psíquica. Mas não se trata de uma situação de ordem moral. Madalena era uma mulher em situação de doença [e doença não é pecado]. E Jesus a curou. Portanto ela tinha uma dívida eterna com Jesus, estava ligada à sua pessoa de maneira indissolúvel. Isso é importante para nós, para entrar no v. 11 do Evangelho de João, porque esta discípula é uma mulher curada. Estas mulheres que seguem Jesus são todas mulheres curadas, libertadas. E o amor que nutriam por Jesus era indescritível. Por isso o seguem como grupo de mulheres, colaborando no seu ministério. Isso não era nada comum no tempo de Jesus. Este grupo estável de apostolas, discípulas, mulheres que seguem Jesus estão presentes no seu ministério e em momentos chaves da sua vida.
Na Igreja primitiva segundo o cardeal Carlos Maria Martini, ela era a mulher “do excesso evangélico”, do exagero. É como um ícone do amor exagerado.
O primeiro a ter este amor exagerado é o próprio Jesus. Ele deixa 99 ovelhas e vai buscar uma que se perdeu, coloca-a sobre o ombro e a conduz para o rebanho. São todas formas paradoxais, para dizer que o amor de Deus é assim. Deus é exagerado. Ama até o fim [Jo 13,1); de modo gratuito faz chover sobre bons e maus, sobre justos e injustos (Mt 5,45); é um pai que espera o retorno do filho que decidiu partir e esbanjou a sua herança (Lc 15,11-32).
Madalena é a personificação deste amor exagerado. Sai de madrugada, sozinha, no escuro, numa cidade como Jerusalém [no 20,1]. Lembra o Cântico dos Cânticos: “de noite procurei o meu amado no meu coração, procurei e não encontrei” (Ct 3,1 ss)…
Para chegar a um equilíbrio espiritual, à maturidade da fé, é preciso exagerar um pouco e fazer além do necessário. É um desequilíbrio que surge do amor, que é a única coisa que realmente nos salva e que dá uma plenitude de vida, uma alegria profunda. E o equilíbrio consiste em passar da generosidade à gratuidade. Eis que quando agimos com generosidade nos sentimos importantes, recebemos aplausos, exercemos um protagonismo. A gratuidade é fazer o bem quando não há reconhecimento e até quando sofremos algum tipo ofensa. É a liberdade para a qual Cristo nos libertou [Gl 5,1]. Não por imposição de alguém, mas por uma escolha que nasce do amor.
Maria Madalena ao chegar no sepulcro, logo vê que a pedra fora retirada. Vai correndo avisar à comunidade. Pedro e o Discípulo Amado vão depressa ao túmulo, mas voltam pra casa. Maria, ao contrário, permanece; fica do lado de fora do sepulcro; ainda chora um morto que segundo sua interpretação foi roubado.
Enquanto chora, faz um pequeno movimento de sair de si e se inclina para olhar. Começa a se libertar da ideia fixa de que roubaram o corpo. E olhando o sepulcro vê dois anjos. São sinais do ressuscitado, mas ela não reconhece. Estão sentados, um à cabeceira e outro aos pés, isto é, o lugar vazio da cabeça aos pés é ocupado pela transcendência de Deus. É Deus que vem visitar a terra.
Os anjos começam a ajudar a mulher através das perguntas: “mulher porque choras?” A mulher quando começa a dizer o motivo do seu choro objetiva o que está vivendo e começa a ver luz. É assim também para nós. Quando verbalizamos experiências de dor, nos libertamos. “Porque choras?” E ela tem a oportunidade de expressar a sua ideia fixa: “roubaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram”. Dizendo isso se dá conta sobre o seu modo de buscar Jesus, como uma coisa, um pacote que se pode levar de um lado para outro.
Mas dito isso, faz um segundo movimento de sair de si. Vê Jesus, em pé, mas não sabe que é Jesus. O vivente está ali, mas os seus olhos são incapazes de reconhecer: “Mulher por que choras?”. “a quem procuras?”. Uma pergunta importantíssima: Então ela, toma uma posição, diz diretamente, pensando ser o jardineiro: Se você o levou embora, me diga onde o colocou e eu vou pegá-lo. Ela está ainda fixada!… Vou buscá-lo. Mas é possível pegar um homem morto? É o excesso de amor! O amor é assim.
A esta altura Jesus a chama pelo nome, Maria. Ela então faz um movimento de 360 graus e se encontra de frente com Jesus. Face a face com o amado do seu coração e ela diz em linguagem familiar: Rabbuni. Não faz uma profissão de fé como Tomé. A relação é de reciprocidade. Ela vê com a Memória [tantas vezes Ele a chamou assim]. Sua atitude é abraçar os pés. Jesus adverte: Não me toques, ou seja, não podes tratar-me como antes. Jesus a convida a entrar numa outra dimensão. Trata-se de subir com ele ao Pai.
Para João todo o mistério pascal, que já começa na paixão até a ressurreição, é uma subida ao Pai. Este Filho levantado faz um itinerário de retorno ao Pai e leva consigo a humanidade. Vou ao meu Pai e vosso Pai, ao Deus e vosso Deus. A Igreja, a comunidade cristã da qual Maria Madalena é modelo, é convidada a fazer este movimento.
Quando ele a chama pelo nome e vai ao seu encontro, os olhos se abrem. Ele não a repreende pelo seu exagero, mas a habilita para a missão. Vai dizer ao irmãos… E Maria vai e diz: Vi o Senhor. Quem encontra o Senhor não esquecerá jamais. É isso que muda a vida. É este encontro que modifica as atitudes, que educa a um novo relacionamento com o Senhor.

 

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Revista de Liturgia Edição 279 – No templo de suas casas: um povo sacerdotal

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